Eu diria: se pudesse ter escolhido, queria ter nascido cavalo. Mas – quem sabe – talvez o cavalo ele mesmo não sinta o grande símbolo da vida livre que nós sentimos nele. Devo então concluir que o cavalo seria sobretudo para ser sentido por mim? O cavalo representa a animalidade bela e solta do ser humano? O melhor do cavalo o ente humano já tem? Então abdico de ser um cavalo e com glória passo para minha humanidade. O cavalo me indica o que sou.
                                                           

Clarice Lispector, Seco Estudo de Cavalos

Para começar a pensar sobre “o mundo equestre no feminino”, talvez o melhor ponto de partida seja um simples fato histórico: meninas e mulheres, como membros de sociedades e culturas diversas, sempre participaram desta singular relação humano-animal. Ressaltemos aqui que devemos ter em conta  que o equino e o ser humano realmente evoluíram juntos – refere-se, na literatura, a uma verdadeira co-evolução das espécies. Ao entender isto, um outro fato por vezes ignorado salta à vista:  na maior parte das sociedades agrárias, mulheres e homens participavam juntos em atividades que dependiam de tração e transporte fornecidos por estes animais. E é evidente que, ao longo da história, comunidades inteiras dependiam destes animais para locomover-se  – ainda mais quando se tratava de migrar ou movimentar-se através de extensos territórios –,não haveria porque pensar nas culturas equestres como sendo de “um ou de outro gênero”.  

Contudo, a história que chega a nós ainda costuma enfatizar noções românticas que apagam a participação equestre feminina,  glorificando a ação “de liderança” de homens montando a cavalo – e que se materializam, por exemplo, nas estátuas das grandes capitais do mundo, de militares ou outros “heróis da pátria”  bem acomodados nos seus fiéis e majestuosos equinos. Assim, se eclipsa não só o cotidiano – por vezes, muito mais heroico – de labor por parte de trabalhadores humanos e equinos que sustentaram a vida ao longo dos tempos e das diversas regiões do mundo ; oculta-se também a história de mulheres a cavalo.  

É por tudo isto que precisamos questionar as noções de senso comum que identificam as culturas equestres como “inicialmente masculinas” (como se só nos últimos tempos, na sociedade atual do esporte e lazer,  as mulheres “começassem a conquistar mais este espaço” ) e complexificar nossas visões, tanto de passado e presente. Assim, embora o registro arqueológico revele a presença de amazonas antigas em práticas de guerrear,  e a história do Velho Oeste norte-americano revele a presença de cowgirls na lida do gado,  precisaríamos de mais  pesquisa histórica para dissipar a dúvida:  na verdade, foram tão poucas as mulheres reais atrás das lendas, aquelas que nos chegam com nomes como os da francesa Joana D’Arc, as brasileiras Anita Garibaldi e Maria Bonita ou as estadunidenses Belle Star e Annie Oakley?

De certa maneira, é nossa própria modernidade que  promove noções que por vezes ofuscam a história. Trata-se pois do surgimento nos séculos XVIII e principalmente, XIX,  de uma cultura fortemente domesticadora das próprias mulheres – de discursos e práticas restritivas da época burguesa que promoviam o culto peculiar ao “anjo do lar”.  Este último impunha às mulheres das elites uma etiqueta particular, um corpo e uma maneira de ser obedientes, assim como um papel que as mantinha afastadas do trabalho “fora do lar” e também, claro, da política (o mundo das decisões sobre vida e recursos públicos). E foi também por isto que muitas mulheres sentiram a necessidade de se rebelar contra as normas de restrição, reivindicar espaço na esfera pública (por exemplo, o direito ao voto) e agir contra a contenção dos corpos femininos. Assim, não surpreende que lutassem também pelo direito às  práticas esportivas, dentre as quais, a equitação (o que incluiu a luta por varrer essa restrição que muitos lugares obrigava às mulheres das elites a montar à la amazone, ou seja, com as duas pernas do mesmo lado.)

Talvez agora poderão começar a entender porque não me agrada a fala que se tornou comum hoje, sobre uma suposta “conexão natural” entre mulheres e cavalos. Minha posição quanto a isso é cética,  e não só porque qualquer discurso que ressalta muito “diferentes disposições” masculinas e femininas me resulte suspeito, ou porque as falas frequentemente vêm atreladas a alardes fúteis sobre “a beleza das mulheres a cavalo”. É por isso sim, mas também  porque, observando uma variedade grande de realidades diversas e empíricas, vemos homens e mulheres, meninas e meninos, se vinculando de maneira vibrante e afetiva aos seus “parceiros equinos”, fenômeno marcante que tem a capacidade de nos levar para além de qualquer estereótipo.  

Dito isto, não duvido que, historicamente falando, as mulheres encontrassem na equitação um esporte que as reconectasse à habilidades equestres antigas, e que talvez esse breve período que por vezes conhecemos pelo termo “vitoriano” tentasse reprimir. Neste sentido, montar a cavalo e participar do mundo dos esportes equestres mostrou-se, sim, um campo fértil para reivindicar liberdade de ação e movimento,  conforme os anseios desse tempo, para muitas mulheres (basta lembrar da história das sufragistas norte-americanas Inez Milholland e Claiborn Catlin Elliman, e suas cruzadas a cavalo empunhando a bandeira dos direitos das mulheres, nas primeiras décadas do século XX) – e de décadas posteriores, ainda muito marcadas pelo legado da restrição.

Com certeza, as atuais culturas equestres nas nossas sociedades de consumo e lazer abriram espaço para práticas esportivas femininas com uma visibilidade enorme – e as mulheres, como sujeitos individuais e coletivos, foram abrindo as portas de  muitos ambientes que se encontravam total ou parcialmente fechados. Assim, hoje em dia, em muitas partes do mundo, mulheres são maioria tanto na prática esportiva equestre quanto no trabalho diário com os equinos. Isto à sua vez faz parte de do conjunto de características das emergentes culturas reflexivas do cavalo, quer dizer, novas disposições para repensar práticas tradicionais à luz de conceitos e pressupostos que o mundo atual facilita –  por exemplo, questões de bem-estar animal ou de métodos de doma e trabalho com cavalos ao longo da vida.

No Brasil, país com o quinto maior plantel de cavalos do mundo, destaca-se uma cultura equestre popular extraordinária. Podemos, por exemplo, observar como jovens meninos e meninas de comunidades rurais e semi-rurais encontram identidade, sociabilidade, afetividade, realização e desafios vitais nesse mundo do cavalo. Para muitos jovens, meninas e meninos, o cavalo é uma das relações que mais dá significado a suas vidas, um vínculo emocional e social  que realmente sobressai. As cavalgadas que mobilizam comunidades inteiras, atraindo também a participação de pessoas que moram em cidades próximas, são outro grande exemplo do poder aglutinador das culturas equestres brasileiras na atualidade.

Une image contenant extérieur, arbre, personne, cheval

Description générée automatiquement

Por outro lado,  não são poucos os desafios que se colocam para este mundo equestre brasileiro de hoje. Há aparentemente pouco espaço de trabalho no setor para as meninas e mulheres,  e no geral, poucas oportunidades de profissionalização, no nível técnico, para qualquer jovem (a diferença de outros países, como a França, onde se oferece ensino médio especializado para a entrada no setor equino-equestre). A opção de entrada num curso superior que permite especializar-se em equinos, que oferece algumas possibilidades (como zootecnia ou medicina veterinária, por exemplo)  pode ser pouco viável para jovens vindas de famílias de escassos recursos ou com acesso dificultado às universidades públicas que, digamos de passagem, nas últimas décadas vinham melhorando no sentido de abrir novos cursos e campis em lugares mais afastados das grandes capitais.

Une image contenant extérieur, ciel, cheval, animal

Description générée automatiquement

Contudo, o saber popular sobre cavalos – esse que hoje se transmite não só de vô ou pai para filho, senão também, cada vez mais, de pai para filha, ou de mãe para filho e filha – convive de maneira dinâmica com as novas formas de saber profissional. Surgem a cada dia novas propostas sobre como facilitar a contribuição do cavalo, e das pessoas que o amam, a um mundo excessivamente urbanizado e por vezes muito depredador das nossas diversas naturezas. Bom momento, então, para voltarmos às palavras acima citadas da Clarice, inspirarmos e permitirmos que o cavalo nos ajude a descobrir “o que há em nós de melhor” – e que floresça então a sensibilidade, a reciprocidade, a liberdade, o respeito.

Imagens:  Miriam AdelmanMiriam Adelman é professora dos Programa de póss-graduação em Sociologia e do programa de pós-graduação em Letras da UFPR. Escritora, poeta, fotógrafa  e tradutora, mantém, entre outros, um blog especificamente sobre Culturas Equestres: www.mulheresecavalosempb.blogspot.com